Coluna de Sírio Possenti – Portal Terra, 29/12/2011

Argumentação, orientação

Sírio Possenti – De Campinas (SP)

Quando conheci as teses de Ducrot sobre semântica, fiquei abismado. Finalmente, alguém tinha proposto uma teoria do sentido que evitava as explicações da lógica (que funciona segundo regras diferentes e próprias) e, ao mesmo tempo, era rigorosa, isto é, não subjetiva (ser ou parecer subjetiva é um vício que se aponta, em geral por ignorância, nas teorias não formais).

Sua tese básica era que qualquer coisa que se diga é argumento para uma conclusão. Ou seja: o sentido de um enunciado é aquilo para o que ele aponta (brinca-se um pouco com a palavra “sentido”, que significa também orientação, como em “sentido norte”). Se estou procurando uma casa e o corretor diz que ela é grande, este é um argumento para que eu fique com ela. Se respondo que é cara, é um argumento para eu não ficar com ela (nem preciso dizer “não quero / não posso pagar”).

Um elemento “subjetivo” desta interpretação tem a ver com o fato de que julguemos que casas grandes são boas e pequenas são ruins. É um dado da cultura, da ideologia. A interpretação adequada mostra que os interlocutores falam no interior de um universo cultural relativamente partilhado.

Um dos exemplos comentados era o do copo meio cheio / meio vazio, que quase todos os comentaristas, os econômicos e os esportivos, repetem. O que Ducrot queria dizer é que importa pouco o que significa objetivamente “copo meio cheio / meio vazio”, expressões que poderiam ser sinônimas, se fossem apenas descritivas. Ou seja, não importa que o copo contenha metade do líquido que pode conter. O que importa é se o discurso vai na direção do copo vazio (estamos bebendo) ou se vai na direção do copo cheio (estamos enchendo). “Ainda tem meio copo” e “Já bebemos meio copo” informam sobre a mesma quantidade de bebida, mas uma das falas deixa os bebuns tranqüilos, enquanto a outra os deixa alvoroçados…

Me lembrei dessas teses, que estudei há 30 anos, quando ouvia o noticiário sobre emprego / desemprego na semana passada. No dia 20, o IBGE liberara dados sobre novos empregos em novembro. Cito uma das notícias:

 “O Brasil registrou a criação de 42.735 vagas com carteira assinada em novembro. Este é o pior resultado do ano e o pior mês de novembro desde 2008, quando houve fechamento de 40.821 postos de trabalho. Os dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) foram divulgados nesta terça-feira (20) pelo Ministério do Trabalho. Na comparação com novembro de 2010, o resultado foi 69% menor, quando foram gerados 138.247 postos de trabalho. Em relação a outubro, segundo o Ministério do Trabalho, houve redução no ritmo de crescimento do emprego –quando foram criadas 126 mil vagas, queda de 66% na geração”. (as ênfases são minhas, e destacam bem explicitamente o lado negativo da notícia).

Agora, vejamos uma informação que circulou dois dias depois:

 “O número de pessoas desempregadas, nas seis principais regiões metropolitanas, ficou em 5,2% em novembro. A taxa é a menor desde 2002”.

Quem lê as duas conclui que as notícias informam que houve um bom número de empregos novos. A diferença é que a primeira insiste na comparação com meses ou anos anteriores. Assim, seu sentido é que a coisa piorou. A segunda não exclui a primeira, mas seu sentido é que a coisa melhorou, há tempos não estava tão boa.

Entre parênteses: os locutores e comentaristas estavam felizes no dia 20, dando uma notícia ruim; e estavam chateados no dia 22, dando uma notícia boa (noblesse oblige). Parece estranho? Não deveria ser o contrário? Ora, não sejamos Cândidos!

O que quero dizer? Só que, com o mesmo dado, pode-se enfatizar seu lado positivo ou o negativo. Pode-se expressar otimismo com uma redação como “apesar da crise, o Brasil criou 42 mil empregos em novembro. Embora o número seja menor que o do mês anterior, ele seria comemorado na Espanha”. E pode-se apresentar o bom dado sobre desemprego como uma praga: ainda há mais de 5% de desempregados. Traduzindo em números, a coisa fica ainda mais feia: são milhões, como o número de favelados, conforme informação de alguns dias depois (é há um implícito, que nem os jornalões precisam repetir: desemprego de 6% não é desemprego, segundo as “boas” medidas econômicas dominantes).

 Só quero dizer que a mídia não precisa mentir para ser de oposição ou de situação. Basta carregar as tintas de um dos aspectos da notícia. A seleção brasileira caiu no ranking da Fifa? Isso é ruim. Mas está na frente da Argentina, o que é bom… PS – O ano está acabando: versão pessimista. Outra está para começar: versão otimista. Desejo aos leitores que sua vida melhore (ainda mais). Desejo isso especialmente aos que lêem sempre outra coisa nas colunas: eles sofrerão menos.

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